O Deus do sofrimento

07/09/2011 11:28

 

O Deus do sofrimento

 

Se é impossível evitar a dor, pode-se enfrentá-la com a ajuda divina.

 

Por Ana Miranda

A chuva começou a cair forte na tarde da terça-feira, 11 de janeiro, mas, apesar da violência das águas, o pastor José Armando Cidaco, da Igreja Batista em Barra do Imbuí, bairro de Teresópolis, na Região Serrana do Rio de Janeiro, não podia imaginar que os dias que se seguiriam seriam os mais desafiadores de seus 26 anos de ministério naquela congregação. Logo pela manhã, o Brasil e o mundo começavam a ser inundados por notícias aterradoras vindas da serra fluminense: famílias inteiras estavam desaparecidas; nas ruas, que mais pareciam rios, pessoas desesperadas buscavam abrigo, sem água, sem comida e sem ter para onde ir, depois de terem suas casas destruídas. A enxurrada entrou para a história como a maior tragédia climática da história do país. Até o último relatório divulgado pelas autoridades antes do fechamento desta edição, em todo o Estado do Rio, a catástrofe havia provocado a morte de mais de 900 pessoas.

Entretanto, em meio às lágrimas e à dor, as igrejas da região passaram a abrigar os que haviam perdido suas casas e transformaram-se em centros de arrecadação e distribuição de água, alimentos e remédios para a população atingida. Na Igreja Batista de Barra do Imbuí, que concentrou grande quantidade de donativos, várias famílias foram alojadas na quadra de esportes e, até meados de março, dois meses após a tragédia, 113 pessoas ainda viviam ali. “É humanamente impossível lidar com tal sofrimento. Na maioria das vezes, sentimo-nos impotentes e é exatamente nessa hora que Deus aparece com forças sobrenaturais”, desabafa o pastor Cidaco. “Como dizer para alguém que perdeu a mulher e três filhos que Deus o ama? O melhor nessa hora é ficar quieto e mostrar nosso amor por meio de atos de acolhimento, socorro, simpatia e dedicação. Enfim, essa é a hora de se viver o amor de Deus e não apenas falar dele. O cristianismo evangélico está precisando aprender isso”, pontua.

O próprio Cidaco não poderia imaginar que, poucos dias após atender CRISTIANISMO HOJE, sua família seria vítima de outra tragédia. Na sexta-feira anterior ao carnaval, sua mulher, Virginia, de 50 anos, viajava na companhia dos pais para Vitória (ES), quando seu carro bateu de frente com uma carreta. Virginia e a mãe, Vilma, chegaram mortas ao hospital, e o sogro do pastor, Waldir, escapou com ferimentos. A pedido da família, a reportagem não procurou Cidaco para nova entrevista.

No início de março, mais uma catástrofe de grandes proporções chocou o mundo, desta vez no Japão. O terremoto mais forte da história do país asiático – um dos mais suscetíveis a abalos sísmicos em todo o mundo –, seguido de violenta tsunami, causou gigantescas perdas materiais e deixou número de vítimas ainda incerto. Desde tempos imemoriais, tragédias de toda magnitude, coletivas e individuais, suscitam no ser humano os mais variados questionamentos. Nas sociedades cristianizadas, uma pergunta parece colocar-se atrás da orelha e açoitar, de modo inexorável, os ouvidos dos fiéis: “Como um Deus que é amor pode permitir que tal tragédia nos sobrevenha?”. Buscar respostas pragmáticas ou absolutas para indagações do gênero parece inútil. “O sofrimento não se explica; enfrenta-se, enquanto é possível”, propõe Jorge Claudio Ribeiro, doutor em ciências sociais e professor titular na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).

“O livro de Jó é um exemplo disso: Jó não reclama da dor, mas também não a entende”, exemplifica, lembrando o personagem bíblico considerado símbolo de extremo sofrimento. “No nível humano, não existe explicação para o sofrimento”, pondera o professor, lembrando que esta é uma condição inerente à existência. “O fato é que o ser humano sofre; a vida é uma tragédia, e não uma comédia”, comenta Ribeiro, que é pesquisador na área de religiosidade. E ninguém está isento de viver tanto uma faceta quanto a outra, pois, embora Deus seja apresentado nas Escrituras como um ser pleno de amor, em momento algum a Bíblia garante ao homem ausência de sofrimento. “O salmista nos lembra, no Salmo 23, que é possível, ao mesmo tempo, estar no vale da sombra da morte e desfrutar da companhia do Senhor”, acrescenta o pastor presbiteriano Rodrigo Franklin de Sousa, mestre em divindade e coordenador do curso de teologia da Universidade Mackenzie, em São Paulo. “Nossa limitação humana torna difícil entender o propósito divino no sofrimento. Entretanto, embora a Bíblia não nos ofereça todas as respostas que gostaríamos, é sempre clara em afirmar que, nessas situações, não apenas Deus se mantém no controle absoluto como se compadece, identifica-se e se faz, de alguma forma, presente junto aos que sofrem.”

RESILIÊNCIA

Fato é que, ainda que paradoxalmente, o sofrimento pode acabar por atrair as pessoas a um relacionamento com o divino, e não o contrário, como se costuma pensar. Pelo menos, foi o que pode perceber o militar Claudio Figueiredo de Souza, 42 anos. Evangélico e cabo do Exército, ele esteve em missão humanitária no Haiti entre janeiro e agosto de 2010 e chegou à capital do país caribenho, Porto Príncipe, uma semana depois do devastador terremoto que provocou a morte de mais de 200 mil pessoas. Os efeitos da tragédia vieram somar-se às já precárias condições de vida no Haiti, o país mais pobre das Américas. Encontrou um cenário desolador – mas, ao mesmo tempo, percebeu o impacto espiritual que uma tragédia pode trazer ao povo atingido. Nos meses em que esteve no país, Souza testemunhou várias conversões nos cultos evangélicos capitaneados por brasileiros e realizados na base das Nações Unidas. “O terremoto levou muitos haitianos a tomarem uma posição ao lado de Deus”.

“O tema da resiliência é cabível no lidar com o sofrimento, pois além de ser uma atitude esperançosa, oferece oportunidade para aprender”, pondera a psicóloga Blanches de Paula, teóloga e professora de aconselhamento pastoral da Faculdade Metodista de São Paulo. Ela é especialista no acompanhamento terapêutico de pessoas em situações de luto. De acordo com Blanches, é possível extrair do sofrimento valiosas lições. “Esse aprendizado é diferente de entregar-se à dor e desacreditar que seja possível uma mudança na caminhada da vida. A vida vai além do sofrimento – essa é uma afirmação resiliente”, define a psicóloga.

Entretanto, apesar das supostas vantagens inerentes aos momentos de dificuldade, o ser humano busca fugir deles de todas as formas. “O fato de evitarmos o sofrimento vincula-se a uma atitude de defesa diante do perigo, de situações que deixam clara a vulnerabilidade do ser humano. Temos dificuldades de aceitar nossas limitações”, destaca Blanches.

“PROMESSAS DIVINAS”

A despeito disso, a tônica do discurso de muitas agremiações de cunho protestante tem sido a de prometer aos adeptos uma espécie de blindagem contra o sofrimento. A lógica de suas promessas é a de que, ao ingressar no “clube dos crentes”, os problemas do fiel desaparecerão como em um passe de mágica. “Essa não é uma proposta cristã”, critica o pastor Elienai Cabral Jr., bacharel em filosofia, mestrando em ciências da religião e autor do livro Salvos da perfeição (Editora Ultimato). “Na dor, o cristão é aquele que conhece a sua fragilidade e compreende que ela não implica em desespero e ressentimento, mas em aperfeiçoamento”, continua. “A dor é um componente estranho e difícil, mas que pode ser fonte de crescimento e de felicidade, porque é sempre a oportunidade para experimentar a plenitude de sua liberdade e do amor de Deus”, reforça o pastor, líder da Igreja Betesda, na zona leste de São Paulo. O líder da denominação, pastor Ricardo Gondim, que ultimamente tem emitido opiniões polêmicas sobre o assunto, preferiu não se manifestar.

Assim, pela ótica bíblica, o Deus que é amor não deixa de amar apenas por permitir que seus filhos sofram. “Nosso Senhor pode livrar-nos de qualquer sofrimento, se esta for a sua vontade. Porém, em muitas ocasiões, permite que seus servos passem por provas e tribulações”, endossa o pastor Temóteo Ramos de Oliveira, da Assembleia de Deus em Petrópolis (RJ). Autor do livroManual do visitador cristão (CPAD), onde aborda a questão do aconselhamento, Oliveira destaca que o fundamental é a maneira de o crente enfrentar as provações. “O cristão genuíno conta com as promessas divinas, que nos garantem que o Senhor Jesus nos assistirá em todos os momentos da vida – desde que depositemos nele a nossa irrestrita confiança”, destaca.

Foi exatamente essa a atitude da pastora Ana Claudia Amaro da Cruz, 40 anos, da Comunidade Evangélica Antioquia, diante da morte de sua filha, Ana Paula, de apenas dez anos, em 2005. “Conheci um Deus que me confortou mesmo quando estava sofrendo demais”, lembra. Vítima de uma doença degenerativa hereditária, a pequena Ana Paula sofreu muito antes de morrer. Foram dezoito longos meses numa rotina de internações, enquanto seus órgãos vitais foram falindo aos poucos. “Quando a descemos à sepultura, só me lembrava que o Senhor a deu e o Senhor a tomou“, conta a pastora, emocionada.

Casada com o pastor Paulo Elias da Cruz e mãe de outros dois filhos, Ana já consegue enxergar o episódio em perspectiva. A ajuda psicológica e sobretudo a fé ajudaram-na a lidar com a dor. Sobre a experiência do sofrimento, a pastora não tem uma fórmula – “Tudo isso me levou a buscar mais ao Senhor. Muitos se revoltam, mas a intimidade com Deus faz com que a gente entenda o que está acontecendo. É algo sobrenatural”, resume.

Fonte: cristianismohoje.com.br